domingo, 27 de dezembro de 2009

pequenas narrativas cotidianas (parte II)

"nº04"

Sono. Sono. Sono. Sono. Pluma. E a palavra nem sempre é leve como o ato. Andar de pés descalços e trocados, escorar e escorrer no corrimão da escada, achar tudo muito confortável, convidativo ao dormir. E nem sempre a coisa é mais valiosa do que a vontade da coisa.

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"nº05"

E só depois de um tempo o mau humor explicado. Desligaram o ventilador no meio da noite.

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"nº06"

Passa em cima do pé da árvore, caminho de ruma das pretinhas, aquela formigarada toda sardosa. Não conta conversa, levanta a perna e se lança. Que filhinho-da-puta.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

pequenas narrativas cotidianas

"nº01"
...e eu só pensava que orar com o pé comprimindo aos 160km/h não era a melhor solução. Ela discordava.

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"nº02"
A gente sempre acha muito ao acaso, sem mesmo uma escolha muito certa. Mas acredite, só hoje percebi que ele prefere mijar nos formigueiros.

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"nº03"
Coloco a colher virada, mexo de um lado pro outro, deixando sempre o equilíbrio aproximado entre a ração e a carne. Deus, como isso me deixa calmo. Calmo. E até me esqueço que a comida não é pra mim, mas quem dera fosse. Enquanto isso, lá fora, os gatos passam tão quietos...

sábado, 5 de dezembro de 2009

Ventura

Uma vez eu te disse, na calada da noite, tremendo no frio do inverno: Quem chegar primeiro lá, daquele lado que ninguém vê, manda uma bandeirada bem bonita, de azul listrado, pro outro, e acorda nas boas horas do mundo. Levanta um estandarte, desenha a coluna da nossa escola.
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Primeiro eu te vi. Ali, vibrando de alegria, em meio à multidão, você parecia santo, certo... Seus olhinhos profundos, duas piscinas de jabuticabas. Azeitonas negras. Aí você me viu, e foi simples como amar, correr, andar, deitar. Simples como o sorriso que você me deu. Deus sabe como te amei naquela hora. Lá fora eu te mostrei os postes, os pombos, as ruas, os carros, as cores que você nunca viu. Te ensinei as horas, o vento. Te afaguei a barriguinha e as orelhas. Nós caminhamos no colo da alegria. Eu parecia um palhaço, e você um trapezista distraído. Gastamos o acaso.
Eram alguns quarteirões até o meu prédio, sete andares acima da calçada. E lá eu te mostrei as alturas, mas você nem ligou. Rodou no meu encalço feito criança, roeu minha calça jeans. Em casa você comeu alguma carne, frango, não sei! Eu sentei no sofá e você, já tão sapeca, pulou do meu lado. Depois você saltou, totalmente imprevisto, e correu esbarrando nas coisas, pisando as roupas sujas, rasgando o lixo. Foi a primeira e última vez que te dei uma bronca. Mas me arrependi. Você me ensinou a amar o estrago e o gasto. Botei um disco qualquer na vitrola e deitei com você no sofá. Naquele dia eu adormeci morno, e acordei sorrindo.
De manhã eu fui comprar o pão, alguma mussarela, salsicha. E até quem me viu na fila sabia que eu tinha te encontrado. Meu último romance. As luzes da matina eram quadriculados suspensos, listras semi-tortas, diurnidade puída. Diminutas perdidas num denso copo de café... enquanto olhava você se lambuzar, me gastei... num copo de café. E a moda migrou à sua maneira, a casa se encheu de ti. Até os meus amigos te adoravam, te abraçavam. Brindei sozinho com você, certa noite. Ao nosso carinho de tocar arranha-céus!
Dispensamos toda e qualquer cigana, que o nosso caminho é trilhado no pé cego, na mão muda. Você é amigo do meu coração. Somos bocas de coleira solta.
Uma vez eu te disse, na calada da noite, tremendo no frio do inverno: Quem chegar primeiro lá, daquele lado que ninguém vê, manda uma bandeirada bem bonita, de azul listrado, pro outro, e acorda nas boas horas do mundo. Levanta um estandarte, desenha a coluna da nossa escola. E um dia, sem nem aviso, você foi. Ruiu numa tarde qualquer, como no dia em que você chegou, e me deu seu olhar. Me perdi em você, sempre soube, sempre quis não saber de nada... assim como fui com você do meu lado. Por horas fiquei te afagando, me afogando. Logo você que era tão cheio de vida, de gostos e desgostos, de rebeldias. Lembrei de quando você se soltou de mim uma vez, e esse foi meu sonho durante vinte anos. É de lágrimas...
Meus vinte anos de não vivência, de ficar olhando, opaco, os pássaros rodopiando pela janela, de deixar o disco soar amargo o fim da tarde toda. Nem saltito mais nas dobras da calçada. Indeciso da cara que tinha que botar, das cores que tinha que pintar, me emoldurei nas minhas roupas, e larguei de mão as notas da melodia. Sentado no meio do meu apartamento eu podia sentir seu narizinho gelado em cada canto de parede, em cada almofada do sofá, em cada roupa... velha... em cada caco da minha alma. Vinte anos, ou mais, já não sei, já não importava mais...
Um dia me deu vontade de correr, e eu me mudei. Me mandei daqui pra lá. Fui morar na boca do mar, como você sempre quis. Eu via as ondas no seu corpinho quando nós voltamos das caminhas do domingo na praia. Eu via ainda as ondinhas, amigão, e sabia que era ali que você queria viver. Nunca pude antes, mas quando sim, fui morar de cara pro vento leste. Meu presente atrasado.
Domingos de terra e sal, vivi. Quando já não distinguia o sentir, sentei na praia e chorei, sorri, cantei a condição de ser sozinho. E aceitei. Até gritei pra você, de onde estivesse: Não solta da minha mão. Me debruça na tua calma, me faz alçar vôo com você, amigão. Não desesperei porque sonhei com você, às vezes. E um dia eu já nem mais tinha lágrimas, que meus olhos já não eram tanto mar.
Fiquei só lá. Esqueci as caras, desmaiei os sonhos, a língua da fala, escorreguei numa curva os meus olhares. Perdi as horas em desfile, desviei do sentir das coisas em grão de areia, errei a morte, e continuei. Me desentendi do céu, e borrei a luz. Sabe-se lá como, desaprendi a vida. Levando calado a obrigação de respirar. Respingo de mar. Fiquei lá escutando o barulho, cadência de sal, da minha barba crescendo. Até desaprendi de mim, mas nunca deixei o tempo lavar você daqui. O vento podia até ir te contar as minhas penas, feito andorinha. É de se entregar.
Mas um dia, na praia, você voltou. O amor chegou, eu estava lá e vi. E se já vinha o vento contra o cais, a maré virando, a vida desacostumou. Doce, o mar ancorou você em mim mais uma vez, e eu só consegui sorrir, que a idade já não deixava bordas pra excesso. Mas você não era grisalho feito eu, era forte. Corria como no primeiro caminhar. Era a felicidade tranqüila do momento mais belo, quando você veio me dizer a bandeira certa pra remar. Sua alegria era de me ter do seu lado, agora pra sempre, onde as essências se abraçam com as desfinalidades, desimportantes acasos como os nossos nós. E eu soube naquele momento o porquê de eu ter te dado o ancestral nome de Saudade. Te abracei, moleza do samba de viver. Te amo...
Levei você pra ver o mar comigo, uma derradeira vez. Mostrei os deletérios, reli as velhas cores, e finalmente me entendi com o céu. Abri o riso em nuvem de fim de tarde, mandei deixar de teima, molhei os pés na praia e dancei o sereno. Falei pra você do mar, do que eu fui nesse tempo desexistente:
- Eu morei dentro dele. Enchi ele do sal dos meus olhos. Passei sempre mais tempo lá dentro do que aqui fora. A gente vai ver ele todo dia, mas nunca vai abusar...
Vambora, filho.